Pele pálida na moldura de fogo

Eu tento não pensar. Eu tento não me enfurecer. Mas hoje eu não consigo. Eu tenho vivido. Tenho aprendido a ter esperança. Era isso que eu gostaria que ela fizesse se fosse ela aqui, e não eu. Então eu estou seguindo em frente, mesmo que doa fisicamente, eu estou. Talvez em um outro dia eu possa dizer que espero encontrar outra garota, mas não hoje. Não hoje.

Há dois anos, tudo teve um fim há dois anos. Eu não entendo como coisas ruins assim acontecem à pessoas tão boas. Naquele ano eu estive em uma igreja duas vezes. Para o nosso casamento. Para o funeral da minha Alice.

Quando ela caminhou até o altar eu não acreditei ser verdade. Eu pensei que relembrar aquele momento sempre seria para mim como olhar um sonho. Ela estava linda, chorando e sorrindo. Sete meses depois eu estava chorando, chorando não descreve, mas foi isso, eu chorei e chorei enquanto a via naquele caixão, fria, sem a cor da vida. Nós nos casamos no verão. Ela morreu no inverno.

Mas aquele foi o desfecho de algo que começou antes de nós. Começou antes que eu pudesse chamá-la de minha. Minha amiga, minha paixão, minha namorada, minha noiva, minha esposa, meu amor.

Eu lembro como ela me contou. Em um minuto nós estávamos rindo de um filme que tínhamos acabado de assistir no cinema. No outro ela estava pálida. A pele branca contrastando com o fogo que eram os cabelos. Eu confuso perguntei o que havia de errado. Ela me respondeu que havia visto um fantasma. Eu ri pensando que era uma piada, mas não, era um fantasma do passado para assombrar o futuro que tínhamos sonhado juntos. 

Alice um ano depois de dar uma volta comigo na roda gigante, conheceu alguém. Na verdade alguém a conheceu. Ela não tinha interesse. Ela me contou que disse para esse cara que ainda estava apaixonada por um garoto que havia conhecido em uma festa estúpida. Então não, ela não estava interessada em nenhuma espécie de relacionamento. 

No início as coisas aparentavam estar resolvidas, esclarecidas. Mas aquele cara voltou. E voltou. A minha Alice sofreu oito anos. As pessoas sempre minimizam esse tipo de obsessão. Eles dizem que uma mulher de roupa curta está provocando, pedindo por uma agressão. Eles dizem que elas gostam de ser humilhadas e rebaixadas, colocadas no mesmo patamar que um objeto. Eles dizem que é besteira, exagero. Mas a minha esposa está morta, e isso é tudo que sei.

Eu lembro daquele dia tão claramente. Eu fiz o café da manhã e ela lavou a louça. Nós conversamos mais uma vez sobre adotar uma criança, nos tornarmos pais. Era como estar dentro de um sonho, planejando outro sonho. Eu fui trabalhar, ela também.

As 10:02 daquela manhã fria e clara o meu telefone tocou. Era uma ligação do celular dela, mas não era a Ali, era alguém me dizendo que ela havia sido atacada, dizendo que eu precisava ir ao hospital.

O criminoso está na cadeia. Ele confessou. Eu me enfureço porque nós fomos até a polícia tantas vezes. Depois daquele dia no cinema nós fizemos de tudo. Mas eu não pude salvá-la. Aquele monstro disse que estava no nosso casamento. Que passou aqueles meses nos seguindo, observando a nossa rotina, planejando.

Ela não chegou ao hospital viva. Eu não acreditei. Mas era verdade. É verdade. Ela não fez mais nenhum aniversário. Ela não pode ser mãe. Ela nunca foi madrinha ao meu lado no casamento dos nossos amigos. Ela nunca vai saber que a filhinha deles tem o nome dela. Ela não viu o que aconteceu nesse tempo, como as letras e a voz dela se tornaram um consolo para pessoas que, como eu, sofrem pelo mundo. Músicas que tocam os corações. Que sempre tocou o meu coração, e que hoje me traz consolo.

Ainda dói. Eu tenho tido ajuda. Alguns dias são bons. Em outros, como esse, parece que tudo acabou de acontecer. Mas eu tenho lutado para que coisas assim parem de acontecer. Para que mulheres como ela possam ter paz e liberdade. Isso não vai mudar o que já aconteceu, mas pode garantir um futuro melhor para a pequena Alice que nasceu há apenas onze meses.

Eu ainda a amo. Sempre vou amar. Mas eu sou uma pessoa diferente agora. Tento esquecer a raiva e manter em mente a imensa gratidão pelo tempo que tivemos, pela vida que compartilhamos, e pelos sonhos que nós conseguimos realizar.

Eu não vou mais escrever sobre isso. Vou escrever sobre como ela era perfeita e errada, de uma maneira completamente apaixonante. Se um dia eu tiver outra família eu quero que eles saibam, eu quero que eles conheçam quem esteve comigo enquanto eu me tornava o homem que sou hoje.

Eu tenho buscado ter um pouco de fé. Sim, tudo teve um fim brusco e injusto, mas foi no meio de uma confusão, que até hoje não entendo, que eu conheci a minha Alice (como a do livro) e acredito que isso foi um milagre. O nosso amor foi um milagre. E não importa como a minha vida será daqui para frente, ela vai ser sempre a minha melhor amiga. Aquela em quem sempre vou pensar quando tiver alguma coisa para contar.

Eu te amo minha amiga, minha amante, minha confidente, minha conselheira, minha cúmplice. Eu te amo minha Alice. Vou sempre, sempre me lembrar de você naquelas tardes de verão, em que você cantava sobre o sol, em que tudo parecia transbordar eternidade. Vamos nos amar para sempre nesses palavras, nas suas canções, nas minhas lembranças.

Eu vou ser feliz, eu prometo. (Por você)

Ana Marques

Nenhum comentário:

Postar um comentário