Memórias de Gaia

A mulher tinha a terra nos olhos. Os cabelos presos constantemente em um coque baixo, impediam o vento de levar os fios pretos pintados para todos os lugares. A pele negra ainda sem rugas, apesar da idade, apesar dos filhos que havia gerado e enterrado. 

Lembrava-se da terra vermelha da sua cidade. Ainda sentia o gosto da poeira, ouvia os gritos vindos da casa em frente. Saberia até o seu último dia as música aprendidas ao caminhar pelos pastos a cada madrugada de trabalho.

Ela estava longe de casa. Linda, poderosa, domou com brutalidade a própria vida. Chegou naquela terra que florescia no inverno sabendo apenas seu nome, o nome do seu lar e que um dia voltaria. Aprendeu a ler, as mãos calejadas se curaram. Se apaixonou, formou uma família. Foi dona da cidade, rainha com uma coroa de cachos.

Ela teve uma vida extraordinária, mas seu coração ainda era vermelho como sua terra. Por isso ela estava voltando, aquela estrada deserta a levaria para casa de papai. 

Ela já não se sentia velha, percebeu que não precisava mais respirar. As dores da vida e as paixões agora eram insignificantes. Ela pisou, descalça, e sentiu o chão a chamando para si, sentiu seu coração sendo atraído para seu lugar de direito, seu berço de nascença. 

Foi engolida por um manto vinho e descansou. Dormiu até a eternidade.

Ana Marques

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