Conto | Residencial #1


Aquela foi só mais uma de muitas noites em que o tempo havia passado sem que eu notasse. A luz do amanhecer entrando pela sacada não foi uma surpresa. E havia tanto a se fazer no dia que eu só podia desejar que essa claridade demorasse mais algumas horas. 

Vesti meu uniforme diário: jeans e camiseta com frases que só eu entendo, e quando olhei no espelho vi aquele tipo de cara que parece não se importar com nada, mas que na verdade é um pouco inseguro. Saí deixando o caos do apartamento para trás. Como as pessoas conseguem se manter organizadas? Ainda é um mistério. 

Descendo as escadas a vi pela primeira vez. Rebeca, é esse o nome. A amiga exigia sua atenção para que as caixas que carregavam não sofresse nenhum acidente pelo caminho. "Ela é tão linda", foi a primeira coisa que pensei. Ela estava sorrindo, tão cedo pela manhã. Como não amar alguém que faz você ter vontade de sorrir pela manhã? 

Eu disse: bom-dia-bem-vindas-sou-o-(perdedor)-morador-do-401-meu-nome-é-Frederico. Esses nomes compridos que ninguém usa, Fred é sempre como escolhem me chamar, mas ela era diferente. Ela disse: que-bom-te-conhecer-Frederico. Igualmente, Rebeca. Muito bom. 

Então dia após dia, eu ia para meu trabalho que mal pagava meu aluguel, estudava com se eu tivesse alguma noção do que eu realmente queria para vida, e me apaixonava pela garota que morava em frente. 

Às vezes a amiga sumia por semanas, e bem no início da noite, antes do horário das aulas, eu ouvia uma melodia baixa soando pelo corredor. Beatles, eu sorri ao reconhecer minha música favorita. E era sempre tão bizarro, eu sorria e sorria. E sim, meus dilemas são classe média, burgueses, mínimos comparados a reais tragédias. Mas, a minha vida era medíocre demais para que eu sorrisse tanto, para que alguém, sem nem tentar, mudasse toda a articulação do meu rosto. 

Você já reparou como um rosto muda quando alguém sorri? Dos olhos ao queixo, eu sentia que era bom sorrir. E ela sorria de forma adorável quando tinha sorte de vê-la pela faculdade. Olá-Frederico-e-um-sorriso. Quanta sorte!

Então, em um sábado silencioso, desses no fim do semestre em que o bairro inteiro fica vazio, ela veio na minha porta. Me convidou para uma festa, me contou que improvisariam uma churrasqueira na sacada. Eu fui, e naquela sala menor do que posso descrever, onde só havia espaço para um sofá no exemplar idêntico onde eu vivia, vi uma completa e impressionante bagunça. 

As pessoas andavam por todos os lados, e eu  tentava absorver o espetáculo de cores em cada canto. Era como estar em um universo paralelo. Às vezes ainda me pergunto se não caí em uma fenda no espaço e estou apenas vivendo a vida de outro Fred tão melancólico quanto eu. 

Mas, eu não sou muito de festas. Estava apenas pensando em algo para dizer a Rebeca e logo voltar para minha cama, quando ouvi a música. Quando a vi dançar. Eu só conseguia pensar: "céus, ela é maravilhosa!". 

Ela estava dançando como se ainda fossem os anos setenta, e todos começaram a se levantar para acompanhar. Foi então que ela veio na minha direção. Sorria daquele jeito, do queixo aos olhos, e pegou a minha mão.

E, de repente, eu estava dançando como se ainda fossem os anos setenta também. E estávamos cantando: "Será que vamos conseguir vencer?". E estávamos nos beijando. E estávamos sorrindo. E eu não estava mais melancólico. 

Ela é maravilhosa.

Ana Marques

2 comentários:

  1. Viajei na história. Agora estou com aquele gosto de quero mais na boca.. aiai...essa sensação, irritantemente gostosa. Ótimo Japinha.

    ResponderExcluir